Depois de trazer textos sobre o Independiente, o Argentinos Juniors e o Palestino, a seção Clubes e Política volta à nossa querida América Latina para falar do América de Cali. Um clube que se liga à política de duas formas: na questão religiosa, com o famoso diabo em seu escudo; e principalmente na questão dos maiores patrocinadores da sua história, o Cartel de Cali, liderado pelos narcotraficantes conhecidos como Irmãos Orejuela. Vem comigo que te conto.
Origens e história do América de Cali
A Sociedad Anónima Deportiva América S.A. surge em 1918, mas a data de fundação do clube é considerada apenas 9 anos depois. Isso aconteceu pois o novo clube América, por iniciativa de um grupo de jogadores, acabou mudando o nome para Club Racing em 1923, e depois para Independiente (quando adotou a cor vermelha).
Somente em 1927, o Independiente se tornou América, e a alcunha do time adotou o nome da cidade, passando a ser comumente chamado de América de Cali.
Os primeiros anos do clube foram de ostracismo, até que no início da década de 1940, um time do América ficou famoso na Colômbia pelos seus contra-ataques e pela velocidade de seus atacantes.
Os títulos não vieram ainda, mas com esse time surgiu algo que caracteriza o América de Cali até os dias atuais: o escudo. Um cronista esportivo, em uma transmissão, disse que o time do América parecia “uns diabos vermelhos”. A diretoria da época gostou do apelido e colocou o diabo – ele mesmo, com sua forma humana e com o tridente na mão – no escudo do clube.
Foi o que podemos chamar de primeiro envolvimento do clube com algo além do futebol. O diabo no escudo teve repercussões na sociedade colombiana, sendo rejeitado e criticado por instituições e lideranças religiosas.
E como o time não vencia nada – ficou sem títulos até 1979 -, criou-se a história da maldição do diabo. Dizia-se na Colômbia que seria impossível um clube com um diabo no escudo vencer alguma coisa. O América de Cali, diziam, estaria amaldiçoado.
Sai o diabo, entra o cartel
E vejam a coincidência: em 1979, o América contrata o já famoso treinador Gabriel Uribe, bicampeão colombiano por Millonarios e Santa Fé. Homem religioso, Uribe coloca uma condição para assumir o cargo: que o clube retirasse o diabo do seu escudo. A diretoria cedeu.
E logo no primeiro ano sem o capeta no escudo, Uribe e o América venceram o primeiro título colombiano da história do clube. Esse título iniciou a década gloriosa do time de Cali: foram 6 títulos colombianos, sendo 5 consecutivos (único pentacampeão da história da Colômbia), além de 3 finais de Libertadores disputadas (perderam as 3). Tudo isso sem o tinhoso no escudo.
Mas é claro que foi apenas uma grande coincidência. A vinda de Uribe e a construção desse grande e vencedor time do América de Cali só foi possibilitada pelo patrocínio de um dos maiores grupos do narcotráfico da história: O Cartel de Cali.
Futebol, crime e política
A década de 1980 foi quando os cartéis do narcotráfico realmente dominaram a Colômbia. O cartel de Cali, talvez a maior dessas organizações, tinha uma estrutura logística e econômica inimaginável para fazer seus negócios. Junto com o Cartel de Medellín, de Pablo Escobar, e do Cartel de Bogotá, de José Rodriguez Gacha, criaram um verdadeiro poder paralelo, cujos tentáculos influenciavam toda a sociedade colombiana.
Os cartéis tinham forças paramilitares, milícias e, com tanto poder, passaram a influir também no Legislativo, no Judiciário e em todo o meio político.
É claro que isso, em algum momento, se associaria ao futebol. Em Bogotá, Gacha financiou o Millonarios. Em Medellín, Escobar financiou o Independiente e o Atletico Nacional. Mas nesses dois casos as coisas foram feitas de forma mais discreta, apesar da história da influência de Pablo Escobar no título da Libertadores de 1989 do Atletico Nacional.
Já em Cali, a relação dos líderes do cartel, os irmãos Miguel e Gilberto Rodriguez Orejuela, com o América era mais clara e evidente. Já em 1980, Miguel assumiu cargo no clube e passou a indicar dirigentes e até o presidente do clube.
Todo o financiamento do grande time da década de 1980 veio do cartel narcotraficante. Além do treinador, famoso, nomes como Ricardo Gareca e Roberto Cabañas vieram fazer parte do esquadrão que dominou o futebol colombiano. Teve até proposta por Maradona, que no último momento recusou e foi para o Barcelona.
Como se sabe, o Cartel de Cali ajudou a polícia colombiana a destruir o império de seu grande rival, Pablo Escobar. Era uma ajuda inclusive financeira e nada discreta. Os irmãos Orejuela se encontravam publicamente com o presidente colombiano à época, César Gaviria, e com o chefe da Policia Federal. Versões dizem que todo equipamento de observação e de escutas foi custeado por Cali.
E o inevitável aconteceu: em 1993, em uma operação em que cada policial envolvido recebeu 1 milhão de pesos, Pablo Escobar foi morto. O Cartel de Cali assumiu toda a operação do narcotráfico colombiano, chegando a ser responsável por 80% da cocaína que circulava nos Estados Unidos. Tudo isso acontecia enquanto patrocinava o América de Cali.
Imaginem, portanto, a força do clube nos bastidores, inclusive em questões como arbitragem.
O fim do dinheiro
O desmantelamento do Cartel de Cali começa em 1994, quando gravações vazadas comprovam a influência e a participação dos narcotraficantes na eleições colombianas de 1994, em prol do candidato liberal Ernesto Samper. As investigações e prisões afetam o poder e a influência do Cartel vai diminuindo.
O América de Cali ainda consegue mais um vice-campeonato da Libertadores, em 1996, perdendo a final para o River Plate. Depois disso, não consegue mais mostrar força.
E o diabo? O diabo voltou para o escudo em 1990, depois da saída do treinador Uribe. A torcida desconfiou, mas aceitou novamente o seu mascote. Recentemente, em 2019, o clube tentou emplacar um escudo comemorativo com a letra A substituindo o famoso capetinha. Foi rejeitado firmemente pela torcida e teve que voltar atrás dois dias depois.
Esse é o América de Cali, uma história vivida junto com o diabo e com o narcotráfico.