A seção ‘Clubes e Política‘ de hoje vem também como uma homenagem a Maradona.

Afinal, falar do Napoli, da história napolitana e dessa camisa linda azul celeste é impossível sem citar Dieguito. Mas vamos além disso: vamos falar da perspectiva política do clube Napoli, de suas origens no Sul do país da bota, da divisão entre Sul e Norte e como isso influencia seus torcedores e sua população.

Não há um posicionamento do clube definido no espectro político, mas há sem dúvida uma perspectiva sociológica de resistência, de uma população mais pobre e oprimida. Vem comigo que eu te conto.

Origens do Napoli: um representante do Sul da Itália

Torcida do Napoli no San Paolo
Fonte: ANSA Brasil

É impossível falar de um posicionamento político do Napoli – ou mesmo de qualquer clube italiano – sem falar na tão discutida divisão da Itália.

Muitas vezes velada ou escondida em discursos de unidade e igualdade, é inegável que a divisão Norte-Sul existe e é forte na Bota. Gramsci chamou isso de “questão meridional”, se referindo à divisão do Norte italiano como o pólo industrial, lugar da riqueza e das grandes empresas e bancos; e o Sul como o local de população mais pobre, com uma economia mais fraca e agrária.

Sendo uma região de trabalhadores, algo importante aparece aqui: o Sul da Itália é que recebe mais imigrantes, principalmente vindos da África.

Neste sentido, Nápoles, a maior cidade do Sul, surge como um grande centro do Sul italiano, uma cidade cosmopolita e cheia de oportunidades.

Desse modo, como explica o antropólogo e sociólogo Christian Bromberger, o caso Nápoles, na Itália, se parece muito com o caso de Marselha, na França, o que deixa as equipes que representam essas cidades, Napoli e Olympique, também com histórias parecidas (já falamos sobre o Olympique de Marselha nesta seção, aqui).

São cidades grandiosas, com uma origem rica (Nápoles chegou a ser capital do reino italiano no séc XIX), que depois conhecem a decadência e o empobrecimento, com toda atividade econômica moderna partindo para o Norte.

Nápoles mantém essa característica cosmopolita e hospitaleira com imigrantes, mas cresce, de certa forma, com esse tipo de ressentimento, como uma grande metrópole que acabou oprimida pelo poder do Norte.

Neste contexto, o Napoli nasce, em 1926, a partir da união entre dois grandes rivais da cidade: o Naples Foot-Ball & Cricket Club e o US Internazionale Napoli já haviam criado um grande dérbi local, mas como ambos estavam passando por dificuldades financeiras, decidiram se juntar para que a cidade não ficasse sem um clube de futebol.

O clube cresce, então, com o espírito sulista da Itália: para a população do Sul, o Norte nada mais é que a reunião dos ricos e frios capitalistas italianos.

Unidos por esse sentimento de opressão, a intenção do Sul é sempre se diferenciar. Por isso, os torcedores napolitanos  são considerados os mais fanáticos da Itália. Vivem e torcem com adoração e são muito ligados à religiosidade e às superstições. Torcem da forma que vivem: sofrendo, brincando e amando. É uma torcida que tem realmente a intenção de representar a sua população, mais pobre e formada majoritariamente por trabalhadores.

Um grande ídolo: Maradona no Napoli

Dieguito com a torcida napolitana
Fonte: Extracampo

Assim, o time cresceu e se tornou presença constante na primeira divisão, mas com pouquíssimos títulos.

Até que, em 1984, resolve investir em um craque argentino que estava em uma má fase no Barcelona. Seu nome: Diego Armando Maradona.

A identificação do jogador com o clube foi imediata. Além da cultura italiana do Sul, mais quente e receptiva, próxima da cultura latina, a cidade de Nápoles se identificou fervorosamente com aquele cara que nunca escondeu seu afeto pela população trabalhadora e que nunca esquecia suas origens – os subúrbios de Buenos Aires.

Em uma de suas primeiras entrevistas, o novo ídolo disse: “Quero virar o ídolo dos meninos pobres de Nápoles, porque eles são como eu era em Buenos Aires”.

Foi uma união afetuosa e imediata, um carinho que ficou, como sabemos, para sempre.

Maradona trouxe consigo as maiores glórias do clube napolitano. Foram 2 Calcios e um título da Copa da Itália na sua passagem de 7 anos pela cidade. Uma relação não só de idolatria, mas também política e sociológica, de uma população que se sentia representada por aquele baixinho driblador que fazia gols de todas as formas possíveis nos times do Norte.

Maradona, portanto, reaqueceu essa relação da população, que se sentia menosprezada, com a alegria de vencer os rivais do Norte, ao menos no campo de futebol.

Bandeira da torcida do Napoli representando Dieguito
Fonte: O canto das torcidas

Torcida napolitana

Outra ligação política importante no Napoli é a sua torcida organizada, na Europa chamados de Ultras. Primeiro chamados de Apaches, é uma torcida rebelde e que também não esquece de suas origens, o que não raras vezes se manifestou com violência.

Os Apaches se dividiram em várias facções da torcida que ocupa o San Paolo. A maior delas hoje é a Masttifs, liderada pelo famoso Gennaro di Tommaso, conhecido como Carogna, ou, em bom português, Carniça. Carniça é filho de Ciro De Tommaso, famoso mafioso ligado ao clã Misso, da Camorra, máfia napolitana.

Gennaro di Tommaso, o Carniça
Fonte: ESPN

Os Masttifs tinham uma relação de muita proximidade com a torcida do Genoa (que também tem uma característica de ser um clube de trabalhadores).

Em 1981-1982, Genoa e Milan lutavam contra o rebaixamento. O Milan venceu seu jogo e só precisava da derrota do Genoa contra o Napoli para se salvar. O Napoli vencia por 2-1, e de repente seu goleiro, Castellini, cedeu um escanteio que pareceu proposital, jogando a bola pela linha de fundo. Na cobrança, Faccenda empatou e salvou o Genoa, rebaixando o Milan.

No estádio, todos comemoraram: o Genoa por se salvar e o Napoli por ter derrubado o rival do Norte.

Com uma rivalidade grande com os Irriducibili da Lazio, que tinha orientação claramente fascista (falamos da Lazio aqui), os Masttifs carregavam também essa imagem de luta contra o fascismo e o poder do Norte.

Mas o fato é que a influência de “Carniça” De Tommaso já criou ligações da torcida napolitana com grupos fascistas e com o crime organizado. Carniça ficou famoso por um episódio na final da Copa da Itália de 2014, entre Napoli e Fiorentina. Havia muita tensão no estádio e expectativa de violência. O capitão do Napoli, Hamsik, foi então conversar pessoalmente com Gennaro. Só com a sua “permissão”, acalmando os ânimos, é que o jogo pôde começar.

Mas o que continua em vigência é a essência napolitana, que ainda está ali: o Napoli mantém essa relação intrínseca com o calor da torcida, e o San Paolo respira adoração e fanatismo.

É uma torcida que exige futebol bem jogado, vistoso e que ainda busca nesse futebol a vingança contra a opressão do Norte. Uma revanche contra uma história mal escrita. O Napoli é o símbolo da luta dessa população, é a única instituição que pode fazê-los ver o Sul vencendo o Norte.

Futebol, sociologia e história, lado a lado – o que, como sabemos, é bem comum.