A seção ‘Clubes e Política‘ desta semana vem falar de um clube muito querido, tradicional e admirado: o grande Ajax de Amsterdam. A história do clube e sua relação com a geopolítica europeia é bem parecida com a do Tottenham, que você pode ler aqui. Uma identificação muito grande com a questão judaica e uma torcida que realmente abraçou essa identidade e a defesa de valores judeus. Vem comigo que eu te conto.
Origens do Ajax: base, juventude e judeus
Em meados de 1894, quando o futebol começava a se popularizar pela Europa, um grupo de amigos em Amsterdam decidiu criar um clube de futebol: o chamaram de “Union”.
Depois, ainda nesse mesmo ano, decidiram nomear o clube em homenagem ao herói grego Ájax, o Grande. Estava criado o Amsterdamsche Football Club Ajax, ou AFC Ajax, oficialmente fundado como clube de futebol em 18 de março de 1900.
Depois de ganhar alguns títulos nos anos de 1910, o Ajax tornou-se mais popular que o Blauw-Wit, rival da cidade, e começou a construir a sua história de maior clube do tradicional futebol holandês.
É claro que a primeira coisa que pensamos como a identidade do Ajax é a sua atenção à juventude e às categorias de base. De fato, desde o início de suas atividades o clube se coloca como um grande formador de jogadores, o que mais organizava seleções de jovens nos bairros de Amsterdam e o que mais investia.
Nem é necessário falar nas grandes gerações holandesas que fizeram sucesso com a camisa branca e vermelha: na década de 30, quando venceu 7 campeonatos; na década de 1990, quando encantou a Europa e venceu sua quarta Champions League; e, claro, a maior de todas, a geração da década de 1970, multicampeã, com 3 títulos seguidos da Champions League, comandada por Johan Cruyff.
Mas, além do seu trabalho com jovens, há uma outra questão, mais política, que define o Ajax: a ligação com o judaísmo.
A relação com o judaísmo
Sabe-se que temos na Europa vários exemplos de clubes que tem essa ligação: o Tottenham, como já citamos; a Roma, o Bayern de Munique, o Austria Viena…mas definitivamente não há nenhum clube na Europa, fora de Israel, em que essa ligação seja tão forte como no Ajax.
A Amsterdam ArenA – atual Johan Cruyff ArenA – é toda decorada com bandeiras israelenses, e não é difícil encontrar torcedores com a Estrela de Davi pintada na testa, nos braços ou até mesmo tatuada em seus corpos.
De acordo com Franklin Foer, no excelente livro “Como o Futebol Explica o Mundo”, o que diferencia as outras equipes citadas é que suas diretorias não procuraram estimular essa relação. Já com o Ajax é diferente, o clube fez do judaísmo parte de sua constituição, de sua moral.
Essa relação se originou entre as décadas de 1930 e 1940, antes da Segunda Guerra Mundial. Nessa época, os clubes que vinham até Amsterdam para enfrentar o Ajax sempre precisavam passar pelo bairro judeu da cidade para chegar ao antigo estádio De Meer.
Foi ali, na região leste, que a grande maioria da comunidade judaica fixou residência quando imigraram para a Holanda, fugindo das primeiras perseguições. O Ajax ganhou, então, o apelido de “Joden”, que significava judeu em holandês. A torcida adotou essa imagem e seus símbolos, e passaram a se denominar como “Super-Judeus”.
Neste contexto, vieram os terríveis anos de Segunda Guerra e a expansão do nazismo pela Europa. A Holanda foi um dos países que mais ofereceu resistência às ocupações, mas não teve força para evitar. A Biblioteca Virtual Judaica diz que, em 1940, antes da invasão nazista, viviam no país 140 mil judeus, ou seja, quase 2% da população neerlandesa.
75% dessa população foi assassinada no Holocausto. Hoje, segundo o último censo holandês, apenas 0,3% da população tem origem judaica.
O “judeu” Johan Cruyff e a ligação ainda mais forte entre Ajax e judeus
Os anos de terror se encerraram em 1945, e o Ajax manteve a ligação com a memória e com o povo judeu. Essa ligação cresceu ainda mais com a geração de Johan Cruyff, nas décadas de 1960 e 1970.
A cidade de Amsterdam, nesta época, viveu um período de modernização e abertura política que criou um sentimento de liberdade e progressismo. Neste contexto, o AFC Ajax apresentou ao mundo uma nova ideia de futebol, criativa, ofensiva, que priorizava a liberdade de movimentação e a pressão no adversário.
Era o Futebol Total de Rinus Michels, liderado em campo por Cruyff.
Cruyff não era judeu, mas era declaradamente um filossemita, ou seja, uma pessoa que admira a fé e a cultura judaica. Nesse ambiente de liberdade do Ajax, Cruyff criou rituais antes dos jogos, como a distribuição de salame kosher, iguaria típica dos judeus.
Além disso, segundo Franklin Foer, antes de todo jogo um dos atletas, van Praag, contava uma piada judia. Em entrevista a Foer, o fisioterapeuta do clube na época disse: “Os jogadores gostavam de ser judeus, mesmo não o sendo”.
A política da cidade de Amsterdam seguia um caminho conjunto com o futebol de seu maior clube. Adotou em sua educação pública aulas de rememoração e redescoberta da história de resistência dos holandeses ao nazismo. Passou também a celebrar datas de comemoração judaica.
Amsterdam elegeu uma sequência de prefeitos judeus e um deles declarou publicamente apoio a Israel no boicote ao petróleo de 1973. Também a Holanda, enquanto país, tomava esse lado: defendia a existência do Estado judaico de Israel na ONU.
Não era surpresa ver que, numa clara relação entre futebol e política, e de acordo com o jornalista Simon Kuper, os maiores fãs do Futebol Total na Europa eram os israelenses.
Além disso, há uma outra protagonista nessa história: Anne Frank. O esconderijo da pequena garota judia, que escreveu os diários que ficaram mundialmente famosos, e de sua família, era em Amsterdam, em uma casa que a partir de 1957 se tornou um famoso museu, um dos mais visitados da Europa.
A torcida do Ajax adotou também a imagem da heroica garota. Suas fotos e símbolos aparecem na Johan Cruyff Arena e não é nada difícil encontrar broches, camisetas e outros souvenirs com a foto dela à venda nos arredores do estádio e do bairro.
Uma outra visão: apropriação
Alguns historiadores judeus fazem críticas à posição do clube. Dizem que nada mais é que uma apropriação dos símbolos e valores, e que a relação se dá de uma forma em que não há reflexão real sobre a questão judaica.
Dizem também que essa ligação, atualmente, se dá somente a partir de um sentimento de culpa ou de vergonha frente ao que o país sofreu e como essa população foi dizimada.
De fato, muitos torcedores não sabem as origens dessa relação entre seu clube e o judaísmo e não conhecem a cultura judaica. Há relatos de que as Estrelas de Davi são em algumas lojas chamadas de Estrelas do Ajax.
Mas, mesmo sendo uma tentativa de redenção, é um posicionamento político do clube e de sua torcida. Alguns rivais, como o Feyenoord e o ADO den Haag, com a desculpa de provocar, começaram a trazer cânticos antissemitas para a Johan Cruyff ArenA, zombando do Holocausto e fazendo sons que imitam câmaras de gás.
Aliás, no geral, as manifestações antissemitas vêm aumentando bastante na Holanda, junto com essa onda política de extremismo que toma conta da Europa e de boa parte do mundo.
A reação do Ajax é sempre forte, pública e firme. Enquanto clube e enquanto torcida, o clube segue apoiando a causa judaica, seja com as campanhas de conscientização e contra a discriminação, seja nos animados cantos de “quem não pula não é judeu”, que fazem tremer a Johan Cruyff ArenA.
Mais uma vez, futebol e geopolítica andando juntos.