A seção ‘Clubes e Política’ de hoje vem falar um pouco da história de um time de um dos países mais fanáticos por futebol do globo terrestre: a Turquia. Nela temos a grande rivalidade entre Galatasaray e Fenerbahce. Mas é a terceira força turca que mais inspira essa relação entre futebol e política, nas suas origens, evolução e principalmente na formação de sua torcida: Os Águias Negras, o Besiktas JK.

 

Origens do Besiktas

O Besiktas Jimnastik Kulubu foi fundado em 1903, no distrito de Besiktas, em Istambul, região mais pobre da grande cidade turca, às margens do Estreito de Bósforo. Mas não surgiu como clube de futebol, e sim como um clube de ginástica, como diz até hoje o seu nome (Jimnastik Kulubu é, em bom português, clube de ginástica). Fundado por um grupo de jovens ginastas, o clube adentrou um grande nicho de jovens do distrito de Besiktas que queriam um local para praticar esportes. Por isso, rapidamente cresceu e se tornou um poliesportivo: vôlei, basquete, atletismo…e, em 1911, veio a formação do time de futebol.

Para falar do Besiktas, é importante primeiramente falar da paixão do povo turco por futebol. Os turcos são, inegavelmente, um dos povos mais fanáticos por futebol no planeta. Famosos por esse fanatismo e pelas suas barulhentas torcidas, os turcos realmente entendem a torcida por um clube de futebol como parte da identidade de uma pessoa. Geralmente, quando você conhece um turco, ele irá te perguntar seu nome, de onde você é e para que time torce. Não necessariamente nesta ordem. Especialmente em Istambul, que apesar de não ser a capital é a maior cidade da Turquia, a ocupação da cidade a partir das guerras e do êxodo rural fez com que se formasse essa identidade das pessoas e das populações com seus bairros e distritos. Em uma cidade literalmente dividida, como é Istambul – metade europeia, metade asiática – esse processo fez com que a torcida por um time esteja muito vinculada à classe social de cada um.

Nesse contexto, surgiu a grande rivalidade entre os dois maiores de Istambul, Galatasaray e Fenerbahce: o Galatasaray está localizado na parte europeia da cidade, e por isso ficou mais associado aos mais ricos, à parte mais abastada financeiramente da cidade, ou seja, empresários, patrões, executivos. Já o Fenerbahce, com sede na parte asiática da cidade, criou uma ligação com a parte mais pobre, principalmente trabalhadores, comerciantes e pequenos empresários. Com o crescimento da cidade, essa parte da população vinculada ao Fenerbahce foi se tornando mais próspera – aquilo que na linguagem sociológica poderíamos chamar de pequena burguesia -. O Besiktas, então – também localizado na parte asiática, mais pobre – surge como o time dos empregados, dos trabalhadores mais pobres. Cresce como o time do povo.

Besiktas Che

Torcida do Besiktas com imagem do Che Guevara
Reprodução Internet

Essa vinculação forte com o povo mais pobre turco surge também pelo espírito de recuperação, de superação, que o Besiktas cria e torna tradicional em sua evolução. No contexto do fim das Guerras Balcânicas, em 1920, quem aparece com um grande time que encanta a Turquia é o Besiktas. No fim da Segunda Guerra Mundial, o mesmo acontece: o Besiktas forma um grande time de 1945 a 1947, vencedor de tudo. Já no contexto do que é considerado o grande passo rumo à profissionalização do futebol turco, a criação da Superlig, quem aparece também é o Besiktas: o time é o campeão das duas primeiras edições do novo campeonato, que permanece com o mesmo nome e formato até hoje. Essa tradição vincula o clube alvinegro à superação, à ideia de resistência, que os torna ainda mais querido aos olhos da população menos favorecida.

Falando em preto e branco, é importante falar também sobre essa identidade. O time adotou as cores por conta das dificuldades financeiras: sem dinheiro para pensar em uniformes modernos, o preto e o branco foram escolhidos pois seriam os mais fáceis e mais baratos de se fabricar. Por causa dessas cores, em 1940-41 surge o que é um dos apelidos mais legais das equipes europeias: os Águias Negras. O time desta temporada (40-41) era quase invencível. Usando muito a velocidade nos contra-ataques e a verticalidade, o time atraía suas presas e dava o bote sem perdão. Uma parte da torcida no sensacional estádio Inonu – antiga casa do Besiktas – começou a cantar “Vamos, Águias” quando o time contra-atacava. A mídia e a diretoria assumiram o apelido e incluíram a cor dos uniformes, criando a alcunha de Águias Negras.

 

A relação Besiktas e política: Çarsi, a torcida barulhenta

Çarci

Çarci
Reprodução: Internet

 

Para além das questões de sua origem e de sua vinculação com a parte pobre da cidade, a grande ligação entre o Besiktas e a política vem a partir da fundação de sua principal torcida: a Çarsi (em tradução literal, “mercado”). O nome é curioso, mas é representativo: a tradição da torcida é usar o mercado público de Istambul como ponto de encontro e como local de suas manifestações e rituais. A Çarsi surge no contexto da resistência ao golpe militar ocorrido na Turquia em 1980, como um grupo de professores, imigrantes, trabalhadores e funcionários públicos de orientação política de esquerda. Com essa origem, a evolução da Çarsi não poderia ser diferente: é uma torcida que utiliza os símbolos do anarquismo e tem como lema “Contra tudo e contra todos”.

É, de forma declarada e aberta, uma torcida antissexista, antifascista, antirracista, ecológica e que se diz contra tudo o que representa o futebol moderno. Recusam qualquer tipo de financiamento e patrocínio que venham do clube ou de empresas privadas. Tem também um forte discurso contra a xenofobia, tendo, inclusive, um armênio como um de seus líderes. O povo armênio (que sofre muito preconceito na Turquia) aqui é bem recebido, assim como os curdos (povo que reivindica um Estado próprio, o Curdistão). O que mais se destaca são as campanhas em prol das causas sociais: a mais famosa é a de doação de sangue. Uma vez por ano, com o slogan de “Dando o sangue pelo clube”, a torcida, com apoio do clube, faz essa campanha nacional de doação. Os cânticos contra o racismo também se tornaram comuns nos jogos. E as pessoas com deficiência também foram lembradas: em 2013 a Çarsi inovou, fazendo um cântico em linguagem de sinais.

Besiktas

Torcida do Besiktas inova e faz cantos por sinais
Reprodução: Internet

A Çarsi ficou famosa também pela sua grande característica: o barulho. É algo que esses torcedores levam muito a sério. Pertencer à Çarsi é fazer parte de um ritual: você veste em si a identidade de Águia Negra e se encontra com sua família no mercado público, onde cantam, dançam, bebem, comem e ensaiam as músicas que serão cantadas no estádio. Essa habilidade de fazer barulho ficou famosa em 2009, quando, ao enfrentar o Manchester United em Old Trafford, a Çarsi cantou tão alto que só os seus cantos eram ouvidos, o que não passou despercebido pela transmissão e pela mídia inglesa. Dessa tradição, veio um recorde: em 2013, de acordo com medições de pesquisadores, o canto da Çarsi atingiu 132 decibéis, o equivalente ao barulho de um jato decolando a 100 metros de distância.

Como última mostra de seu posicionamento político, a Çarsi participa ativamente da oposição ao governo Erdogan, no poder na Turquia desde 2003. Ainda como primeiro-ministro, Erdogan iniciou um discurso de fortalecer o futebol e a cultura turca, aumentando investimentos estatais e buscando parcerias. Já como presidente, depois da tentativa de golpe que usou como pretexto para mudar a Constituição, Erdogan participou da inauguração da nova casa do Besiktas, a Arena Vodafone, em 2016. No evento, discursou e foi elogiado pelo presidente do Besiktas, o que deixou grande parte da torcida enfurecida. A reação aconteceu porque a Çarsi havia participado, em 2013, das manifestações populares contra a manobra de Erdogan de mudar o sistema político do país. Vários de seus membros, inclusive, sofreram com as repressões às manifestações, que foram violentas.

A reação deu resultado: o Besiktas se distanciou da figura de Erdogan, que hoje foca os seus esforços de influenciar as massas e conseguir popularidade pelo futebol a partir da atuação no Istanbul Basaksehir, time fundado em 1990, que vem recebendo alto investimento do Estado e é o atual campeão turco, representando o país na Champions League.

Esse é o Besiktas, clube de resistência. E essa é a Çarsi, grupo de torcedores que, não por acaso, são conhecidos como “As Almas Rebeldes de Istambul”.