Voltamos aos anos 1970. Como contou o excelente Lúcio de Castro no seu também excelente documentário “Memórias do Chumbo”, as ditaduras na América do Sul estavam em alta e sempre buscavam algum apoio popular através do futebol.
Mas no Chile algo diferente acontecia. Em 1970, venceu a eleição o socialista Salvador Allende, com a promessa de um governo igualitário e progressista. Mas havia resistência dos militares. E é claro que o futebol também se enfiou no meio da briga. Essa é a história pouco contada de hoje.
Futebol e o clima de ditadura
Em 1973, o Colo-Colo montou um time incrível e fazia uma ótima campanha na Libertadores, dando show. O Chile, que nunca tinha visto um time nacional vencer o título continental, se uniu para torcer pelo “Cacique El Popular”, apelido do clube.
Tanto os socialistas do partido de Allende quanto os militares tentavam ganhar apoio político a partir da campanha do clube.
Mas, na final, o Colo-Colo pegou o fortíssimo Independiente da Argentina, que seria o único time, até hoje, tetracampeão consecutivo da Libertadores.
O Colo-Colo lutou, mas acabou perdendo na prorrogação do jogo final: 2-1.
Alguns jornalistas e historiadores chilenos chegam ao ponto de dizer que, se o Colo-Colo tivesse vencido, o Chile estaria mais unido e o golpe contra Allende poderia não ter acontecido.
Veio o golpe
E não deu outra. 23 dias após a final, a primeira tentativa de golpe fracassou. Mas, 2 meses depois, no dia 11 de setembro de 1973, os militares bombardearam o Palacio de La Moneda.
Uma versão, mais aceita, diz que Allende suicidou-se. Outra diz que foi assassinado. De qualquer modo, é seguro falar que foi morto por conta do golpe militar.
Uma das primeiras ações da ditadura de Pinochet também envolveu o futebol: o Estácio Nacional de Santiago foi transformado em cárcere, servindo de local para a prisão e o fuzilamento de grupos de oposição à ditadura.
Ao mesmo tempo, um atacante do Colo-Colo, Carlos Caszely, começava a se tornar ídolo nacional. Declaradamente antifascista, de esquerda e anti-Pinochet, ele, junto com seu companheiro de clube Leonardo Véliz, usava de seu prestígio para criticar abertamente o governo militar.
O governo não tinha a coragem de puni-los descaradamente, e por isso optou pela forma mais covarde, como é de praxe dos autoritários.
Carlos Caszely
Em 1973, pós-golpe, Caszely foi embora do Chile, escolhendo jogar no Levante, da Espanha. Ao voltar ao Chile para um jogo das Eliminatórias para a Copa de 1974, ele foi recebido no aeroporto pela mãe. Sentiu que ela estava estranha.
Ao chegar em casa, a revelação: sua mãe, Olga Garrido, havia sido sequestrada e torturada pelo regime de Pinochet. Tudo por causa das posições do filho.
Na repescagem das Eliminatórias, o Chile enfrentaria a União Soviética, que acabou desistindo do jogo que poderia lhe dar a vaga à Copa do Mundo por conta da ditadura chilena e das denúncias de tortura e assassinatos.
O Chile ficou com a vaga por W.O. Em busca de publicidade através do futebol, Pinochet convidou os jogadores ao palácio para cumprimentá-los. Mas Caszely, em um ato de pura coragem, não deu a mão ao ditador chileno.
Esse ato ficou para a história da luta contra o regime militar no Chile.
Demorou, mas a vingança de Caszely chegou. Em 1988, com a ditadura já politicamente mais fraca, ocorreu o plebiscito, convocado por Pinochet, para que a população lhe desse mais tempo no governo.
Em um vídeo gravado para a campanha do “Não”, Olga Garrido contou uma parte da história do que sofreu e, surpreendentemente, Carlos Caszely surge nas câmeras em meio a várias flâmulas do Colo-Colo e apoia a mãe, em defesa da democracia e das eleições.
É um dos vídeos mais lembrados da campanha do “No”, que venceu com 55% dos votos. Pinochet, enfim, é retirado do poder.
Hoje, no Estádio Nacional de Santiago, o portão 8 é um memorial às vítimas que ali morreram. E uma parte das arquibancadas foi “aposentada”, para que as almas de quem ali conheceu a morte possam, de alguma forma, se divertir com o futebol.
Nessa arquibancada, uma inscrição, permanente, diz: “Un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”. Todo chileno que for assistir futebol no Estádio Nacional lembrará dos horrores da ditadura.