A seção ‘Clubes e Política‘ volta essa semana para falar de um clube que é mais que futebol e mais até que simplesmente política. Ele é e representa uma cultura, uma sociedade, um povo, uma forma de ver o mundo. O Athletic Bilbao é isso – antes de tudo, um símbolo do País Basco, uma equipe que faz parte da sociologia espanhola e europeia. Vem comigo que eu te conto tudo.
Origens do Athletic Bilbao
Falar da origem do Athletic Bilbao é sempre uma surpresa, pois muitos pensam que o clube teria sido fundado pelos bascos. Mas não, os fundadores do clube Bilbao FC, em 1898, são britânicos, que estavam em Bilbao por conta da rápida industrialização da cidade.
Na mesma época, estudantes originários de Bilbao, mas que acabavam de voltar da Inglaterra, onde tinham conhecido o futebol, fundaram o Athletic Club. Da junção dos dois nasceu o Athletic Club de Bilbao. Por isso, o nome em inglês (Athletic).
Mas a ligação com o País Basco já se tornou forte logo nos primeiros anos do clube, e em 1911, por conta das reclamações dos rivais sobre os jogadores britânicos, o Athletic impõe pela primeira vez a regra que até hoje define o clube: a de ter apenas jogadores bascos.
País basco
Mas vamos começar do início: afinal, o que é o País Basco? O País Basco é uma região que engloba o extremo Norte da Espanha e o sudoeste da França, sendo portanto cortada pelas montanhas dos Pireneus. São 2,2 milhões de habitantes divididos em sete províncias, quatro espanholas e três francesas.
Por ser um povo originário dos Pirineus, é uma sociedade que cresceu isolada e por isso a região tem uma cultura própria, inclusive a própria língua, o euskara. É considerada a residência do Povo Basco e todas suas tradições e símbolos e por isso, desde o final do século XIX, traz em si movimentos nacionalistas e separatistas, sendo o mais conhecido o grupo ETA, formado em 1959, em plena ditadura Franco. Algo parecido com a história entre Catalunha e Barcelona, que já vimos aqui nesta seção.
No contexto do crescimento do Athletic, ainda na década de 1910, o nacionalismo basco vai se tornando mais forte na região e o clube torna-se o símbolo dessa luta. O Partido Nacionalista Basco, que nasce quase junto com o clube, em 1895, cresce e cria seus símbolos.
A bandeira do País Basco, verde, vermelha e branca, é criada, e o Athletic Club, que antes tinha como cores o branco e o azul, torna-se também vermelho e branco, aumentando a sua associação com a luta política basca. E assim o time evolui no futebol espanhol, defendendo a causa basca e mantendo a tradição de só aceitar jogadores bascos.
Chegamos então à Guerra Civil na Espanha, seguida pela ditadura de Francisco Franco. Foi um período muito difícil para o Athletic. Além de sofrer financeiramente, a região foi bem afetada em sua economia e também socialmente.
A postura nacionalista de unidade espanhola de Franco foi duríssima com os movimentos separatistas. O idioma Euskara foi proibido e qualquer símbolo que fizesse alusão à causa basca também. Até o nome do clube mudou. Acusado de ter uma grafia estrangeira, o time passou a ser Atlético de Bilbao.
A opressão sofrida pela ditadura franquista ajudou na criação de grupos extremistas, como por exemplo o já citado ETA. É o ETA quem planeja e executa a famosa explosão do carro do general Luis Carrero Blanco, que teria sido o sucessor de Franco na ditadura.
Toda a história do Athletic anda junto com a história do País Basco. Durante a ditadura, o time se enfraquece, mas consegue se manter na elite e fortalece ainda mais sua tradição de só ter jogadores bascos, como forma de demonstrar resistência.
Essa resistência também é demonstrada com títulos: durante a ditadura franquista, mesmo enfraquecido, o Bilbao consegue dois títulos espanhóis e 8 títulos da Copa do Rei. Com a volta à democracia em 1975, o Athletic Bilbao volta ao seu nome original e se fortalece novamente. Apesar do reconhecimento oficial do País Basco como comunidade autônoma, a constituição espanhola é rejeitada e os conflitos continuam. E o Athletic segue representando os bascos em campo.
O Athletic Bilbao hoje: uma recusa ao futebol moderno e globalizado
Com a estabilidade democrática, o Athletic cresceu muito. Hoje é, segundo pesquisas, a quinta maior torcida da Espanha. É o quarto maior vencedor do Campeonato Espanhol, só perdendo para os três gigantes, Barcelona, Real Madrid e Atlético. É o segundo maior vencedor da Copa do Rei, com incríveis 24 títulos (mais que o Real Madrid).
Além disso, sustenta com orgulho a posição de ser o único clube da Espanha além de Barcelona e Real Madrid a nunca ter sido rebaixado para a segunda divisão. É um clube muito forte, principalmente jogando em casa, com o apoio da torcida. A relação do Athletic Bilbao com o povo basco é quase religiosa.
Não por acaso, seu estádio, o San Mamés, sempre foi conhecido como La Catedral. Cada jogo é um culto, uma reverência à cultura basca e ao modo basco de ver e viver o mundo.
É um clube que coloca a questão da resistência em prática e demonstra ações progressistas, especialmente no esporte: cuida de vários projetos sociais em suas províncias, especialmente relacionados à educação; e é também um pioneiro na Espanha em relação ao futebol feminino.
Las Canteras de Bilbao: a base
Mas seu fundamento mais importante é a valorização das categorias da base. Nessa função política de formar suas crianças, o esporte, principalmente o futebol, tem total protagonismo. Las Canteras (como são chamadas as categorias de base na Espanha) do Bilbao são, todo ano, ocupadas por mais de 1.500 crianças bascas para fazer os primeiros testes em busca do sonho de vestir a camisa que representa a sua terra. Há toda uma filosofia de formação, que defende um futebol livre e ofensivo, sempre junto com a formação política e cidadã.
A maior mostra de resistência continua na tradição de só ter jogadores bascos. No futebol de hoje, é quase impossível imaginar um clube de sucesso que não abra suas portas para os jogadores estrangeiros, africanos, sulamericanos, enfim, que se coloque dentro da globalização.
Pois é, mas o Athletic não pensa assim, e sustenta a sua tradição.
Houve uma pequena abertura: são aceitos agora também jogadores que tenham a descendência basca, mesmo que não nascidos ali, e também jogadores com tempo de formação dentro da cultura basca, mesmo que estrangeiros. Isso possibilitou ao Athletic ter seus primeiros jogadores negros, como por exemplo Iñaki Williams, um dos grandes destaques do elenco atual.
Abriu-se também a possibilidade dos treinadores serem estrangeiros, desde que tragam o respeito e o conhecimento da cultura basca. Foi o caso de Jupp Heynckes na década de 1990 e também do argentino Marcelo ‘El Loco’ Bielsa, que treinou o clube durante três temporadas.
Mesmo com essa abertura, ainda trata-se de uma grande restrição, considerando as grandes seleções internacionais que são formadas pelos grandes clubes europeus. A rival do Athletic no País Basco, por exemplo, a Real Sociedad, abriu mão dessa tradição ainda em 1989.
E por que isso ainda é feito?, você pode perguntar. A resposta é: por conta da torcida, da posição do povo basco de Bilbao. A última pesquisa realizada concluiu que 70% dos torcedores do Athletic Bilbao preferem ver o clube rebaixado do que quebrar as regras de contratação de jogadores. Saber que os jogadores que vestem sua camisa são todos frutos de seu chão e de seu modo de vida aflora e incendeia a torcida basca. Esse é, hoje, junto com a bandeira verde, vermelha e branca, o principal símbolo do nacionalismo basco hoje.
Concluindo: o Athletic Club de Bilbao é MUITO mais do que futebol. É a expressão política de um local, de um território, de uma cultura. Nada melhor para finalizar esse texto do que dar a palavra a um senhor conhecido como Urko, fanático torcedor do Athletic Bilbao, trazida em texto de Lara Pereira:
“A filosofia basca é a base do clube. Sem sua filosofia o Athletic seria uma equipe a mais, como o Barça, o Valencia ou o Madrid. Se contratam jogadores de outras partes da Espanha ou estrangeiros, a gente deixaria de ir ao estádio. O Athletic não seria o Athletic. Digamos que em Bilbao, quando você nasce, te colocam uma camisa do Athletic. É como se fosse uma parte da família. (…) É como uma religião. É um sentimento difícil de explicar, tem que levar no coração para poder sentir. E completa: “Se é mais difícil competir assim, com gente da sua terra e 90% dos jogadores formados nas suas categorias de base? Claro que sim, mas é muito mais gratificante. Temos 8 ligas espanholas, 24 Copas e 2 Super Copas. A última, em 2015, em cima do Barça de Messi. Imagina? 11 crianças contra uma seleção mundial. Um pequeno comércio de esquina contra uma multinacional. Isso é ou não é bonito?”.
Isso é o Athletic Club de Bilbao: resistência, tradição e a expressão de um povo.