A seção ‘Clubes e Política’ volta essa semana para mostrar que os tentáculos da relação entre futebol e política são muito diversos e não se restringem apenas aos países onde o futebol é mais forte. Ela chega também até ao pequeno Chipre, onde existe uma rivalidade que pode muito bem ser comparada a um Celtic x Rangers ou um Panathinaikos x Olympiacos. É o clássico cipriota APOEL x AC Omonia, os dois maiores vencedores do país, ambos representantes de Nicósia, capital do pais-ilha. Hoje falaremos do Omonia, que pode-se dizer com segurança que é o maior representante das ideias comunistas no futebol europeu. Quer saber mais? Vem comigo.

Origens do Omonia (e do Chipre)

Para falar do AC Omonia é preciso falar um pouco sobre o Chipre. O Chipre é uma pequena ilha no leste do Mediterrâneo, que foi (e ainda é, de certa forma), historicamente disputado por Grécia e Turquia. Apesar da maioria da população ter origem grega (o que segue sendo assim até hoje), quem teve o controle da ilha durante muito tempo foi o Império Turco-Otomano. No contexto da guerra russo-turca de 1878, quem assume o controle da ilha são os britânicos, que trouxeram para o pequeno país duas coisas: bases militares e o futebol.

Com o fim da primeira grande guerra, que trouxe consigo o fim do Império Otomano e a criação da Turquia, a presença turca na ilha aumentou muito. Estamos, aqui, em 1919/1920, época em que se deu a guerra entre Grécia e Turquia, e que criou uma imensa rivalidade entre os dois países. Surgem então diversos movimentos nacionalistas do Chipre, que pedem não só a saída dos turcos do território, de grande maioria grega, mas também a Independência geral do Chipre em relação aos britânicos.

Esses movimentos de resistência e de luta contra poderes instituídos faz crescer no pequeno país as ideias de esquerda, revolucionárias, e também a simpatia ao comunismo e à unidade demonstrada na União Soviética.

Nesse contexto, em 1948, após a Segunda Grande Guerra, o APOEL, nascido em 1926, que já era um clube grande e tradicional no país, fez um movimento político arriscado: mesmo com seu estatuto proibindo manifestações políticas de diretores e jogadores, enviou à Associação Helênica de Atletismo uma mensagem em que agradecia a escolha do Chipre para sediar um grande evento de atletismo e, junto a isso, disse que seria uma ótima ocasião para acabar com as ideias comunistas no país.

Vários jogadores, simpáticos às ideias de esquerda e comunistas, se sentiram desrespeitados e se rebelaram contra o clube. Todos pediram demissão do APOEL e decidiram formar um novo clube. Nasceu então o AC Omonia, declaradamente de esquerda, pregando em seu estatuto ideias como a luta contra o autoritarismo e o fascismo.

As cores do clube – verde e branco – representam a esperança e a paz. O significado do nome? Do grego: união e solidariedade.

Mas o contexto histórico não ajudou muito. A independência dos britânicos só veio em 1960, e os acordos feitos para divisão do território, mediados pela ONU, privilegiaram a minoritária parte turca, que ficou com a parte norte da ilha. A sociedade cipriota, portanto, se formou bem dividida por conta dessa questão, e por isso as ideias esquerdistas de união entre povos já não eram mais bem aceitas. Em outras palavras, a parte grega odeia a parte turca.

Luta, resistência e uma nova fundação

Mesmo em uma sociedade que pode-se chamar de conservadora, o Omonia conseguiu crescer e fazer sucesso. O clube trouxe para si mais e mais torcedores, que seguiam claramente sua ideologia: as bandeiras no estádio iam desde Che Guevara e Fidel até aos símbolos soviéticos. Até mesmo os hinos da URSS tocavam no estádio dos verdes de Nicósia. Em sua era de ouro, nas décadas de 1970 e 1980, o Omonia foi soberano. De 1971 a 1986, venceu 13 dos 16 campeonatos nacionais disputados.

Em 1992, surgiu mais um elemento para a dimensão política e ideológica do clube: a fundação da GATE-9, sua torcida organizada de Ultras. O número 9 é uma homenagem a Sotiris Kaiafas, grande ídolo do clube, que jogou no Omonia durante 18 anos e é considerado o maior jogador cipriota da história. Kaiafas chegou a vencer, em 1977, o prêmio Chuteira de Ouro da Europa.

A GATE-9 é formada por torcedores radicais e vinculados fortemente às ideias originárias do clube. É uma torcida declaradamente e oficialmente antifascista, antirracista e, nas palavras deles, “contrários ao futebol moderno”, que se tornou, também segundo eles, apenas dinheiro.

O movimento mais legal e transformador da GATE-9 é a aceitação aos turcos. A torcida cria e o clube participa de campanhas contra a xenofobia e de inscrição de torcedores turcos como sócios.

Em uma partida contra o grande rival APOEL, colocou na sua torcida 500 turcos, o que gerou a ira dos rivais, cuja torcida exalta a divisão e a guerra.

A parte mais triste desse posicionamento político foi a adesão e vinculação do clube a um partido político, o AKEL (Partido Progressista do Povo Trabalhador). O fim da URSS enfraqueceu tanto o partido como o clube, e a participação dos políticos na direção do clube acabou afundando o Omonia em dívidas.

Renascimento

Em 2018, não conseguindo ver outra saída, o conselho acabou aceitando a venda do clube ao grande empresário grego-americano Stavros Papastavrou. A reação da torcida foi a pura revolta. Para eles, a venda de clubes para grandes empresários é a principal característica do futebol moderno. Para piorar, Papastavrou era vinculado à direita política. Era inaceitável.

Um grande grupo de torcedores, então, junto com a GATE-9, resolveu fundar outro Omonia. Foi criado o People’s Athletic Club Omonia 1948, totalmente do zero, para, segundo o estatuto, “resgatar os valores originais da fundação do Omonia em 1948”.

O Omonia é hoje. de fato, um clube criado e gerido por sua torcida. A direção é totalmente descentralizada e diversa e vem conseguindo sucesso: o novo Omonia já conseguiu o primeiro acesso e está na terceira divisão do Chipre. Junto com o clube, as ideias de esquerda e socialistas também foram renovadas: o clube participa das greves no país, participa de manifestações trabalhistas e até se juntou aos protestos do Black Lives Matter, contra o racismo.

Esse é o Omonia, time de luta e resistência, que quer, mais do que tudo, uma sociedade pacífica e melhor para se viver.