A seção “Clubes e Política” volta das férias com texto inédito para contar a história do Defensor Sporting, um clube médio do Uruguai que desafiou os gigantes de Montevidéu e também a ditadura militar em seu país. Vem que te conto.
Contexto do futebol e da política uruguaia: Defensor, um pequeno entre gigantes
Estamos no ano de 1976. Três anos antes, o presidente uruguaio Jorge María Bordaberry decretou o fechamento do parlamento e do Senado, instaurando uma ditadura cívico-militar no país vizinho. É o período que ficou conhecido como “os anos de chumbo”.
Assim como na política, com perdão da analogia, no futebol uruguaio não havia espaço para o diferente. Mesmo com o futebol profissionalizado no país desde 1932, o Uruguai nunca havia visto um campeão diferente de Nacional ou Peñarol. Isso mesmo, em 44 anos apenas dois times tinham vencido o campeonato.
O domínio dos dois gigantes era tanto que a federação criou um outro troféu, chamado Copa Montevideana, que era dada ao terceiro colocado do campeonato.
De repente, aparece um desafiador: o Defensor Sporting, conhecido como “La Viola”, por usar o uniforme roxo.
1976: A chegada de De León e o time politizado
A montagem do histórico time do Defensor começou com a chegada do treinador. Já famoso por ter treinado o Nacional na década de 1960, José Ricardo de León chegou do México para treinar o que dizia ser seu time do coração.
E o cara era cheio de estilo: viva com livros de filosofia debaixo do braço, fazia tudo de terno e gravata e falava 4 línguas. Mas em tempos de ditadura, a característica mais importante de De León, que mais chamou a atenção, era a ideologia política: De León era um comunista convicto, filiado ao Partido Comunista (que agora estava extinto pela ditadura).
Além de De León no comando, o presidente do Defensor também era um conhecido sindicalista e alguns jogadores também tornaram suas críticas à ditadura públicas: um deles foi a jovem promessa Julio Filippini.
Um parênteses: a história de Julio Filippini
Já contamos a história de Filippini na seção Histórias Pouco Contadas, mas é bom repetir. Em tempos de ditadura, é assim: o medo impera e uma frase pode colocar tudo a perder. Foi o que aconteceu com Filippini.
Em uma rodada decisiva do Campeonato de 1976, o Defensor de De León resolve estrear o jovem atacante Julio Filippini, de apenas 19 anos contra o Nacional. Se quisesse sonhar com o título, era necessário não perder para os gigantes.
O Nacional estava na frente por 2-1, mas, já no segundo tempo, Filippini (que já havia sofrido o pênalti do primeiro gol) fez o segundo gol, do importante empate que aumentava as esperanças do clube roxo.
Na empolgação do gol, Filippini disse a frase que foi fatal: “Mando uma saudação ao meu irmão e para os companheiros da penal Liberdade”. O irmão de Filippini estava preso pela ditadura, acusado de subversão, e a penal Liberdade era o presídio onde os militares mantinham a maioria dos presos políticos no país.
Filippini tinha um ritual pós-jogo: sempre após as partidas, seu pai vinha lhe buscar e lhe dava uma carona para casa. Mas, naquele dia, a carona foi direto para um esconderijo. Decisão de pai, que pode ter salvado o filho.
Isso pois, horas depois, alguns militares já procuravam o jovem jogador na sua casa e também no estádio Luis Franzini, casa do Defensor. Julio Filippini se tornou um foragido da ditadura, e não mais apareceu para treinar nem para jogar.
Uma frase e um horrível contexto político acabaram com a carreira do jovem atacante, que só reaparecia em público na volta da democracia, em 1985, já com outra profissão: contador.
O título histórico do Defensor de 1976 e a volta olímpica ao contrário
Mas vamos à parte da história que teve final feliz. O Defensor chegou à última rodada com 1 ponto de vantagem em relação ao Peñarol. Precisava portanto vencer o Rentistas para comemorar o título histórico no seu pequeno estádio, que nunca havia visto tanta gente: 18 mil pessoas compareceram.
Fez 2 a 0 com certa facilidade, mas já no segundo tempo levou um gol e uma pressão final. Mais ou menos aos 40 minutos, De León tomou uma atitude estranha, mas cheia de efeitos: ajeitou o terno, o chapéu e foi embora para o vestiário. Depois, ao ser perguntado, ele disse que a intenção era mandar uma mensagem psicológica, tanto para seus jogadores quanto para os adversários, de que o trabalho já tinha acabado, o título estava ganho, o gol de empate não sairia.
O título realmente veio e o estádio enlouqueceu. Era um momento histórico não só para o Defensor mas para o futebol uruguaio, o primeiro campeão do país que não se chamava Nacional ou Peñarol.
Mas ainda havia um último ato para essa história. No momento da tradicional volta olímpica (que foi inventada pelos uruguaios, nas Olimpíadas de 1924), os jogadores começaram a realizar o movimento no sentido do relógio, ao contrário do que é a tradição.
Pode ter sido uma distração? Um acaso? O jornalista Santiago Diaz, em seu livro “Una vuelta a la historia: Defensor del 76″, afirma que não. Ele diz que o ato foi planejado por De León em um treino durante a semana.
A intenção era passar a mensagem de que os sistemas podem ser enfrentados, e o mais fraco pode sim vencer os mais fortes. E o ato foi sim compreendido por muitos como um sinal de resistência. Era possível enfrentar não só os dois gigantes no futebol, mas também os gigantes autoritários que tomaram conta da política.
E ainda hoje, 45 anos depois, as pichações nos muros do Estádio Luis Franzini lembram do posicionamento do clube: “o único time anti-sistema”.
Fontes principais: Globo Esporte (Leo Lepri) e Yahoo Esportes